quarta-feira, junho 22, 2011

Cidade dos sonhos

Cecilia Reis
Revista Bons Fluídos


Numa pequena comunidade no sul da Índia, a expansão da consciência e a busca da unidade entre os homens são o grande barato. Mas tudo isso caminha de braços dados com as pesquisas de tecnologias sustentáveis, com os investimentos em novas formas de educação e com uma arquitetura altamente contemporânea.



O projeto arquitetônico da cidade reproduz uma galaxia em forma de espiral e incorpora quarto setores radiantes
que abrigam o centro internacional, o cultural, o industrial e o residencial. Tudo cercado pelo cinturão verde.



As construções, como o Centro dos Visitantes, não seguem qualquer padrão e expressam
a multiplicidade de visões dos moradores. Aí acontecem shows, exposições, e é onde ficam as lojas.


                                          


O Matrimandir, espécie de templo, ocupa essa esfera metálica dourada, no centro da cidade.
Sua arquitetura grandiosa domina a área da paz, como é chamado esse pedaçõ da urbe

Cidade universal, ponte entre o passado e o futuro, caminho de transformação... Auroville já mereceu incontáveis definições, na tentativa de sintetizar o que ela representa. Para a designer paulista Ruth Reis, que acaba de desembarcar de uma viagem à Índia, a melhor palavra é esperança: "É possível viver de um jeito simples e natural, sem tanta angústia nem pressa".
Há 40 anos plantada na região de Villupuram, no Estado de Tamil Nadu, a cidade que surgiu do sonho de um filósofo hindu, Sri Aurobindo, que perseguia o sentido da vida e acreditava que o caminho para conquistar a paz e o equilíbrio seria a união entre os homens. Debruçada sobre a Baía de Bengala, que engloba quase 100 vilas espalhadas por uma área de 20 quilômetros quadrados, com uma população estimada em 3 mil pessoas originárias de mais de 45 países - apenas metade dos habitantes é indiana. "É um lugar onde se vive pacificamente, somando em vez de competir", diz Ruth. "Auroville simboliza a procura de liberdade, e a liberdade sempre desafia a ordem. O projeto só poderia acontecer na Índia, onde impera o caos, as buzinas não param de tocar, vacas e gente se misturam aos carros num trânsito de enlouquecer até paulistano. Um país sem regras, palco da diversidade mais absoluta, em que a tecnologia de ponta convive com uma cultura riquíssima em tradições."
Se estivesse vivo, Sri Aurobindo, o grande pai dessa comunidade, com certeza concordaria. Ele mesmo definia a Índia como uma "divina anarquia", um ambiente de extrema complexidade, que inspira viver intensamente a experiência humana. Ele ainda dizia: "O homem tem de tomar consciência de seu ser interior e só depois se organizar espontaneamente, sem se submeter a leis externas a seu espírito". O mestre, autor de vários trabalhos espirituais, defendia o direito de cada um identificar seus rumos, mas lembrava que para tanto é preciso se libertar da autoridade do ego. Auroville foi pensada como um cenário que estimulasse justamente essas conquistas.
VIDA REAL
Liberdade é o mantra. Mas que não se confunda Auroville com a ideologia do flower power dos anos 1960. "A cidade não tem nada a ver com as antigas coletividades hippies, onde se vivia na ilusão, sem fundamentos nem propósitos", afirma o professor de ioga Marco Schultz, de Florianópolis, Santa Catarina, que há mais de 12 anos lidera grupos de estudo em viagens a centros de peregrinação espiritual. "Aos hippies faltava ética. Em Auroville se exercita a consciência", diz. Além disso, havia naquelas tribos um desprezo visceral pelo conforto - considerado supérfluo - e pela produtividade. Nesse projeto não é pecado produzir, muito menos consumir. "A rotina é concreta", afirma Ruth. Para sobreviver é preciso trabalhar, pagar impostos (33% da renda vai para a comunidade) e estresse não é uma palavra rara. Em contrapartida, há a certeza de que se pode contar com o outro e que a ele devemos nossa solidariedade. "A comunidade tem diretrizes pautadas no bem comum. A propriedade é coletiva e a administração cabe a um conselho composto por um representante do governo da Índia, um conselheiro internacional e os moradores. A proposta é colocar o ego a serviço da consciência e empenhado na busca pela unidade", diz Schultz. 
SEM EXCESSOS
Parece uma cidade do interior, feita de espaços vazios e muitos caminhos pequenos. A bicicleta é o meio de transporte mais popular e poucos carros circulam pelas ruas. A atmosfera tranquila não lembra o agito das cidades maiores. Alguns poucos prediozinhos de três andares servem de moradia. Construções maiores abrigam espaços comunitários e algumas impressionam pelas dimensões e estilo. Estilo, aliás, há de todos, replicando na arquitetura a ideia da diversidade e revelando as misturas de povos que ali vivem. Mais distantes do centro, as casas salpicadas no meio do mato lembram as chácaras. Aqui e ali, habitações abandonadas testemunham o ir e vir de quem quis apenas experimentar um novo jeito de viver.

No centro de comércio, boas lojas oferecem produtos que vão muito além do artesanato. As empresas que integram o projeto têm produção em pequena escala, mas tudo benfeito, itens sofisticados para atender um público de alto nível cultural, doutores, intelectuais, empreendedores.
Ao consumidor ocidental, o "shopping" pode parecer tímido porque não prima pela variedade. Coisas demais parecem, aos olhos daquela gente, uma armadilha que estimula o apetite pelo supérfluo. Em Auroville, evitam-se os excessos.

Isso não quer dizer que as pessoas sejam despidas de vaidade. "É fascinante ver as indianas trançando os cabelos, pintando as unhas, se enfeitando de flores", diz Ruth. "A estética faz parte dos valores locais", afirma a designer. "Fiquei numa pousada em estilo japonês, bem construída, com roupa de cama boa, comida benfeita, bela arquitetura", diz. "Se você é uma manifestação do divino, que é perfeito, você tem de buscar a perfeição em todas as dimensões", afirma Marco Schultz, traduzindo o apreço pela estética que está no cerne do projeto.
ESTE É O CAMINHO
Ali, vive-se na contramão do capitalismo. Crescer não é a prioridade. Não há pressa inclusive para implantar o conjunto arquitetônico concebido por Aurobindo, ainda bem incipiente. Qualidade de vida, isso sim é uma aspiração imediata. A aprendizagem desses caminhos está nas palavras da Mãe, a francesa Mirra Alfassa, companheira espiritual de Aurobindo, que, fascinada por suas ideias, fez erguer o projeto depois da morte do mestre. Há um centro de estudos e pesquisa, o Savitri Bhavan, onde se podem conhecer o trabalho e a visão do guru e da Mãe. Apesar do tom esotérico, essa busca pela consciência não se atém a uma religião. Aliás, a proposta é a não religião que abriga todas as formas de fé sem impor nenhuma. Há abertura para todos os homens de sabedoria, mas não se deve limitar a uma tradição religiosa. Não há gurus nem dogmas. "A Mãe é uma inspiração. Porém, a responsabilidade de nossas próprias ações é individual", afirma Schultz.

Visitar o Matrimandir evidencia esse valor. A construção em forma de esfera, dourada, é um templo sem deuses, silencioso, que concentra uma energia feminina ligada à força da criação e a valores como compaixão, leveza e amorosidade. O único barulho é o da água corrente, que embala a meditação, prática hinduísta adotada como canal de autoconhecimento. "Para ser livre é importante entrar em contato consigo mesmo", diz Schultz.

DESAFIOS
Calma, mas conectada, a comunidade imaginada pelo mestre está em perfeita sintonia com a tecnologia, o design e a inteligência do mundo contemporâneo. Há um estímulo especial a práticas sustentáveis, como o uso de bambu na arquitetura e a ampliação das diferentes formas de energia solar. Desde sempre foi assim. Basta lembrar que o local onde a cidade foi construída estava severamente erodido. A primeira fase da implantação do projeto se limitou a recuperar o terreno e a flora devastada. Muitos quilômetros de floresta foram replantados, a fauna foi reintroduzida, o uso sustentável de água e energia virou prática, e há uma campanha constante para reciclagem e redução dos resíduos. Nas escolas - são seis, atendendo crianças de todas as vilas -, a pedagogia da livre escolha permite optar por matérias, de modo que cada aluno descubra seu potencial. Esportes e arte são altamente valorizados.

Apesar das concepções que regem a comunidade, Auroville enfrenta as mesmas questões de outras cidades do mundo. Surpreendentemente, há vestígios de violência e destruição. E há quem chegue ali apenas para espiar. "Tem pessoas que vêm aqui para fugir do mundo, tem aquelas que não querem assumir responsabilidades, que não acreditam no trabalho, tem as angustiadas...", diz Schultz. "Ao mesmo tempo, há almas com propósitos elevados." Criada para abrigar 50 mil pessoas, até hoje não tem infraestrutura para receber tanta gente. O sonho de Aurobindo caminha lentamente, dependente de doações do governo da Índia, de ONGs e de pessoas de boa vontade. Para os otimistas, como a designer Ruth Reis, esses passos vagarosos representam uma nova percepção global. Ela enaltece a cidade-laboratório, em que se experimentam novos modelos de convivência e de vida urbana, tão necessários ante a falência em que as cidades se encontram.
Ao consumidor ocidental, o "shopping" pode parecer tímido porque não prima pela variedade. Coisas demais parecem, aos olhos daquela gente, uma armadilha que estimula o apetite pelo supérfluo. Em Auroville, evitam-se os excessos.

Isso não quer dizer que as pessoas sejam despidas de vaidade. "É fascinante ver as indianas trançando os cabelos, pintando as unhas, se enfeitando de flores", diz Ruth. "A estética faz parte dos valores locais", afirma a designer. "Fiquei numa pousada em estilo japonês, bem construída, com roupa de cama boa, comida benfeita, bela arquitetura", diz. "Se você é uma manifestação do divino, que é perfeito, você tem de buscar a perfeição em todas as dimensões", afirma Marco Schultz, traduzindo o apreço pela estética que está no cerne do projeto. 

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